20 de fevereiro de 2007

Sobre a felicidade

Steven Pinker, em seu livro Como a mente funciona (Ed. Companhia das Letras, 1998), dedica algumas páginas (410 a 414) à questão da felicidade.
Ele cita dois psicólogos (David Myers e Ed Diener) que fizeram ampla pesquisa sobre a sensação de felicidade entre norte-americanos ao longo das últimas décadas:
E Myers e Diener observam: "Em comparação com 1957, os americanos possuem duas vezes mais carros por pessoa - além de fornos de microondas, televisores coloridos, videocassetes, aparelhos de ar condicionado, secretárias eletrônicas e 12 bilhões de dólares de tênis de marca novos por ano. Então, os americanos esstão mais felizes do que em 1957? Não estão."
Em um país industrializado, o dinheiro compra apenas um pouco da felicidade: a correlação entre riqueza e satisfação é positiva, porém pequena. Ganhadores de loteria, depois de passar a comoção da felicidade, retornam a seu estado emocional anterior. Do ângulo mais positivo, isso também acontece com pessoas que sofreram perdas terríveis, como paraplégicos e sobreviventes do Holocausto.
(...) O estudo da felicidade muitas vezes lembra um sermão pregando valores tradicionais. Os números demonstram que os felizes não são os ricos, privilegiados, saudáveis ou bem-apessoados; são os que têm cônjuge, amigos, religião e um trabalho instigante e significativo. Essas constatações podem ser exageradas, pois aplicam-se a médias, não a indivíduos, e porque é difícil desenredar causas e efeitos: ser casado pode fazer você feliz, mas ser feliz pode ajudá-lo a casar-se e manter-se casado. Mas Campbell (um pioneiro da psicologia evolucionista) fez eco a milênios de homens e mulheres sábios quando resumiu o resultado de sua pesquisa: "A busca direta da felicidade é uma receita para uma vida infeliz."
Penso no que dizem Pinker e Campbell e me despeço com uma pergunta: se eles têm razão, será que muitos de nós não teríamos de mudar o rumo de nossas vidas?
Até a próxima.

9 de fevereiro de 2007

Pedaços

Alimentamos a ilusão da continuidade. Observamos a natureza, e em tudo vemos coesão. Uma semente se transforma em broto, que se transforma em árvore. A fina areia do universo escoa em infinitas ampulhetas por bilhões de anos desde o BigBang... e então temos a Terra. Mais alguns bilhões de anos de evolução, e um organismo unicelular vai se diferenciando, ganhando complexidade, até transformar-se no homem. Pensamos sobre nossa existência e acreditamos existir uma linha conectando cada segundo de nossas vidas, não deixando nenhum momento de fora. As narrativas são assim: romances, filmes, novelas de televisão. Um fato conduz a outro. Causa e efeito. E, na mão de quem desenha a linha, um sentido – um propósito.
Nossos sentidos percebem continuidade. Nossa mente sente-se permanente: sou, essencialmente, o mesmo de um ano, de vinte anos atrás. É da percepção dessa continuidade que se forma nossa sensação de identidade. A vida não pode ser descontínua, pensamos. Meu pensar, meu sentir não podem ser fragmentados, pois, se assim fosse, quem seria eu, quem seríamos nós? Fragmentos que têm uma ilusão de unidade?
Mas é preciso considerar que a verdade segue seu próprio caminho, e não as auto-estradas que preparamos para ela. O fato de que nós sentimos e desejamos uma continuidade não significa que ela exista.
Nossa percepção de cores e sons é limitada pelos nossos sentidos: há cores e sons que nos escapam. A realidade, para cada um de nós, é moldada pelos nossos sentidos e nossos pensamentos. Nossa mente está programada para enxergar continuidade: não fosse assim, como conseguiríamos atravessar a rua ou dirigir um carro? Nós somos tempo: relógios que pensam. Consciência é tempo, tempo é continuidade.
Tentemos deixar momentaneamente nossas mentes de lado. É impossível, mas vamos fazer de conta. Tentemos enxergar o mundo sem nossos pensamentos e desejos... Talvez vislumbremos a possibilidade – “absurda, sem sentido”, diríamos todos nós em coro – de que cada instante é ele próprio, sem nenhum fio que o ligue ao instante anterior e ao próximo...
Sob essa perspectiva, que deixarás de lado tão logo termine de ler este texto, cada instante da minha e da tua vida é completo em si mesmo, não um pedaço que se liga a outros. Instantes soltos, que nascem e morrem antes de serem sentidos. A vida: uma fonte de instantes, brotando incessantemente – o paradoxo da contínua descontinuidade. Se for assim, cada um de nós é, sem saber, o narrador de sua própria vida, tentando incessantemente conectar um instante no outro, costurando-os com o fio de nossas esperanças e crenças. O grande (e inconsciente) propósito de nossas vidas seria, então, o de buscar continuamente que a junção desses fragmentos componha uma narrativa, dando às nossas existências um sentido de que precisamos ardentemente mas que não existe fora de nós.