3 de dezembro de 2005

A altura das grades

O presente vai tomando conta da gente, e o passado se desfaz em denso nevoeiro. O real se transforma aos poucos em lenda, em mito. Parece que estamos vivendo em 1984, de Orwell, onde o passado era moldado conforme os interesses do poder, e as pessoas já não mais conseguiam se lembrar se a vida estava melhor ou pior do que há dez ou vinte anos.
O presente se impõe como verdade.
Porém, algo estranho acontece. Caminho pelas silenciosas ruas de meu bairro e de repente me surpreendo com a altura das grades. Lembro subitamente de um esquecido tempo em que podíamos nos sentar na frente de nossas casas. As famílias colocavam as cadeiras nas calçadas e ficavam até tarde conversando sob a luz fraca dos postes nas quentes noites de verão. Não me lembro de grades naquele tempo. Muros, sim. Mas baixos. Não me lembro de medo. Esse tempo existiu realmente? Parece uma ilusão, o desgastado mito da idade de ouro. Mas, contra todas as evidências, minha memória resgata lembranças de uma prosaica utopia que acredito ter vivido.
As trevas não chegaram subitamente. Não houve um dia em que, por decreto, as pessoas se trancaram em suas casas. Não. O perigo foi entrando sorrateiramente em nossas vidas e, com a mesma naturalidade com que aceitamos o frio do inverno, acabamos nos acostumando com a idéia de ficar trancados dentro de nossas casas. As grades foram crescendo em volta de nós como o capim depois da chuva, silenciosamente. Hoje, contemplando o presente com a memória do passado, supreendo-me não apenas com a altura dessas pontiagudas estruturas de ferro, mas especialmente com o fato de que elas se tornaram apenas um dos muitos recursos para tentar manter distante a violência. Acima das grades, cercas eletrificadas. Nas casas, sofisticados sistemas de alarme. Nas calçadas, guaritas com vigilantes particulares. Nas ruas, carros das equipes de segurança privadas. Volto trinta anos no tempo e me dou conta de que não era nada assim. Como esperávamos que fosse o ano 2000? Como seria 2020? Estaria o mundo se preparando para uma nova era? Agora vivemos 2005, o presente nada mais é do que o futuro de outrora, e eu me constranjo em anunciar para os fantasmas do passado que não há boas novas: para crentes e descrentes, não são bênçãos que descem dos céus, mas o medo, que se precipita lentamente sobre nossas casas e vidas como o sereno de uma eterna madrugada.
Crianças e adolescentes crescem nesse cenário e devem pensar que sempre foi assim. Hoje, nós olhamos para as casas e nem reparamos nas grades que as separam das ruas; olhamos para as ruas e nem cogitamos da possibilidade de nos sentarmos nas calçadas, de caminharmos sob o manto das estrelas. O passado se transforma lentamente em ilusão, e a lembrança de outros tempos soa como uma espécie de senilidade.
Caminho sob a luz do sol nas silenciosas ruas de meu bairro. Vejo belas casas. Há jardins, alguns sabiás, raros carros passando. Mas eu me pergunto quanto mais as grades terão de crescer para percebermos que tomamos um caminho errado no passado. Não, não era esse o futuro com que sonhávamos!

6 de novembro de 2005

Viver na China

São sete da tarde em São Leopoldo, cinco da manhã em Shanghai. Aqui, primavera; lá, outono. Embora a China freqüente as páginas dos nossos jornais e revistas graças a seu espantoso crescimento econômico, pouco sabemos sobre como vivem as pessoas que estão no centro ou à margem desse desenvolvimento.
Tenho informações de que, lá, os operários trabalham 12 horas por dia, sete dias por semana, folgando apenas nos feriados e recebendo salários entre 50 e 100 dólares mensais. A atividade sindical é proibida, e aqueles que ousam fazer as mais singelas reivindicações são condenados a vários anos de prisão. Um único partido governa o país, a imprensa e a internet são censuradas. O comunismo aliou-se ao capitalismo: do comunismo, permaneceu a ditadura opressora; o capitalismo da China, por sua vez, lembra aquele do início da Revolução Industrial. Por tudo isso, não deve nos surpreender que grandes empresas do mundo todo estejam se transferindo para a China: o custo da produção é muito mais baixo num país em que, por uns poucos dólares, trabalha-se de sol a sol todos os dias da semana e onde o progresso econômico permite agressões ao meio ambiente que não são mais toleradas na maior parte do planeta. Numa economia globalizada, o milagre econômico chinês faz evaporar postos de trabalho no Brasil e em muitos outros países onde o capitalismo precisa conviver com direitos trabalhistas e legislações ambientais. Tudo indica que vai demorar muito para os chineses conhecerem a democracia, pois os ventos da liberdade colocariam em risco o lucro fácil que o capital internacional busca na China.
Para além dos fatos e das opiniões, mantém-se minha curiosidade sobre a vida daqueles que vivem nesse cenário de transformações. Procurei, nos últimos dias, livros sobre a China e encontrei publicações de dois tipos: livros que louvam o milagre econômico chinês e arriscam apresentá-lo como modelo para outras nações (ai de nós!) e livros que apresentam relatos de viagem feitas dez ou vinte anos atrás, precocemente envelhecidos frente a tão aceleradas mudanças. Foi em blogs que consegui encontrar outros olhares sobre a China: é verdade que são visões de estrangeiros, mas pelo menos são olhares contemporâneos, críticos, de gente que está lá, respirando o ar do Oriente. Um repórter do jornal francês Liberation, Pierre Haski, mantém um interessante blog jornalístico sobre a China, Mon journal de Chine - finalista de um concurso da Deutsche Welle sobre os melhores blogs jornalísticos em várias línguas. Um olhar prosaico da vida de um estrangeiro em Pequim pode ser encontrado em China Life Blog, criação de um jovem professor norte-americano, Shawn Matthews, que está há poucos meses trabalhando em uma escola na capital chinesa e conta, com textos e muitas fotos, seu dia-a-dia naquela cidade. Também recomendo um passeio pelo China Blog List.com, site com links para blogs sobre a China. Ainda estou à procura de blogs escritos por chineses em alguma língua que eu possa entender.
Para além das barreiras lingüísticas e da minha preocupação com a perversa aliança chinesa entre comunismo e capitalismo, tenho de reconhecer que é fantástico o potencial dos blogs: se conseguimos separar o joio do trigo, podemos ter contato com uma riqueza de experiências e opiniões que há pouco tempo não iam além de um estreito círculo de relacionamentos e agora se abrem para o mundo. Seria bom poder acreditar que a multiplicação e descentralização dos canais de comunicação ajudarão as causas da liberdade e da igualdade, aqui ou na China. Porém, a história da humanidade parece nos dizer que é mais recomendável um ceticismo com pitadas de esperança do que um idealismo que nega a realidade. Boa noite, Brasil. Bom dia, China.

30 de outubro de 2005

O domingo e a segunda

É um domingo à noite, a cidade começa a dormir sem poesia ou talvez com os rastros da poesia que agora se dissolve em tua mente. A segunda-feira está logo ali, à espreita, e eu não sei o que esperas dela ou o que ela te reserva. As segundas costumam ter solidez de muralha frente aos devaneios dominicais. O ciclo de uma semana abriga toda a vida. A sexta à noite é cheia de perspectivas; é o começo de um tempo em que se tem alguma liberdade; é momento de pensar em fugas, em revoluções, em utopias. A segunda-feira consome os sonhos ou os coloca em suspensão; uma poderosa e impessoal estrutura entra em ação definindo a posição de cada um no mecanismo que faz o mundo girar. É dessa posição que se fala; é nessa posição que se age... até as dezoito horas da sexta, quando o ciclo se completa, com novas perspectivas voltando a ser vislumbradas enquanto a silenciosa máquina aguarda nossa resignada abdicação das segundas-feiras. A roda vai girando sem parar, semana após semana: um pouco de sonho, muita realidade, leveza de sonho, o peso da realidade... Presos nesse círculo, eu e tu suportamos a aspereza das segundas-feiras não apenas porque enxergamos lá à frente a suavidade das horas do começo de um outro final de semana, mas especialmente porque nada vemos além da roda em que giramos.