12 de agosto de 2006

Garota ateniense

Houve, 2500 anos atrás, uma garota que nasceu, viveu e morreu em Atenas. Não há qualquer registro histórico de que tenha existido, mas a vida foi tão real para ela como é para ti agora. Aos dez anos, nossa garota brincava de boneca, aprendia a tecer, participava dos festivais religiosos, temia as guerras e à noite orava para a deusa Atena. Sua beleza e sua educação eram o orgulho de seus pais. Seu bom humor era a alegria da família. Posso imaginá-la de túnica branca e sandálias, com seu longo cabelo escuro e seus grandes olhos bebendo a vida, como Ifigênia em Áulis. Posso imaginá-la pensando que o tempo passava muito devagar nas quentes tardes do verão grego. Posso imaginá-la pensando no futuro, em como seria sua festa de casamento, nos filhos que teria. Posso também imaginar os sutis temores existenciais que a assaltavam vez que outra e que ela tentava desfazer na chama de sua politeísta fé.
Essa garota existiu. Seus pais, seus irmãos, seus tios, filhos, netos também existiram. Mas, vê só, tu nada sabes dela, ninguém nada sabe dela ou de sua família. Onde está seu túmulo? Onde está uma referência a ela num livro de história clássica? Nada sobrou de sua existência que tenha chegado à nossa consciência. É verdade que parte de suas cinzas se transformaram mais tarde em videiras, que se transformaram em uva, em vinho, que foi bebido por outra garota, que deu a luz a mais uma moça, num ciclo sem fim. É verdade que o que ela disse ou fez influenciou o pensamento ou o destino de muitas pessoas que com ela conviviam. Mas também é verdade que sua vida se perdeu na história, os rastros de sua existência foram se apagando ao passar de cada segundo, de cada minuto, sob o peso das ações e pensamentos de bilhões de seres humanos que nasceram e morreram depois dela.
Tu me perguntas o que tens a ver com essa menina. E eu te digo que talvez, daqui 2500 anos, tu sejas a garota ou o garoto cuja existência não passe de uma hipótese no raciocínio de gente especulando sobre a passagem do tempo. Pensando bem, não será toda a humanidade, daqui milhões ou bilhões de anos, também uma garota ateniense na história do universo?

5 de agosto de 2006

Sem nós

Nem eu nem tu existimos nesse mundo que gira em torno de uma distante estrela, perdida no espaço infinito, fora do alcance de qualquer telescópio. Há manhãs de sol de um tempo parecido com o nosso setembro. Há pássaros, nuvens, montanhas, chuvas, luas. A vida corre nesse mundo, alheia à nossa existência. Segue ela sem o controle remoto de nossa consciência, sem review, sem forward.
Uma árvore projeta sua sombra sobre um gramado ao sol do meio-dia, mas ninguém está lá para ver nem árvore nem sombra. E no entanto elas existem tão concretamente como a cadeira em que tu te sentas agora. O vento acaricia as folhas da árvore solitária, mas não há ninguém para escutar o doce murmúrio desse suave contato. Não há idéia de árvore. Há apenas árvore. Não há sensação de vento. Apenas vento.
Também não há vitória ou derrota, ambição ou humildade, desejo ou resistência. Há apenas vida, sem mim, sem ti. Vida sem nós.

11 de junho de 2006

Mais uma segunda?

Como se fosse sereno, a noite vai se depositando lentamente sobre as casas, as árvores e as ruas . Não são seis horas ainda, mas já se podem ver estrelas entre as cinzentas nuvens de um domingo frio de quase inverno. Há beleza no momento, mas tua mente se desloca do presente para o futuro e diz que amanhã a roda do tempo faz mais uma volta: será de novo segunda-feira. As luzes dos postes vão se acendendo agora como se acenderam ontem mais ou menos na mesma hora. É quase inverno, como era quase inverno um ano atrás. É verdade: um domingo termina, como há uma semana. Mas amanhã não voltaremos a viver o que já vivemos. Em meio à ilusão de um tempo circular, como o movimento da Terra em torno do Sol, há a realidade de um tempo que jamais retorna, que segue do desconhecido para o desconhecido e nos encontra como o vento encontra a folha de uma árvore perdida no meio de seu caminho. Talvez haja algum conforto na idéia de um tempo circular, talvez ela nos dê a ilusão de conhecer o dia seguinte, nos permitindo dizer simplesmente que é outra segunda, e dar de ombros... Será mesmo assim? Tua vida e minha vida seguem em frente a cada dia, desde que nascemos. O tempo segue sua trajetória e nos leva, não em círculos, mas à frente, sempre à frente, em direção ao desconhecido. Esse contínuo fluxo transporta a minha e a tua vida, e mesmo a vida da criança que acabou de nascer. Eu não quero te entristecer se vens aqui buscar alguma espécie de ajuda. Não, eu não quero te dar nuvens quando queres sol, mas não posso deixar de descrever o que vejo. Talvez o que eu tenha para te dizer não seja o que gostarias de ouvir, mas eu te digo com carinho: apesar de todas as incertezas, da insegurança que se esconde por detrás de qualquer crença, vejo beleza em seguir o fluxo do tempo, em beber o tempo como quem sorve a pouca água do único cantil que se tem no meio de um deserto sem oásis. Há beleza em ser folha levada pelo vento, em poder ser uma vida num universo que, indiferente às vontades humanas, é só pergunta, é só mistério.
E se me perguntas qual o sentido de tudo isso, é claro que eu não consigo encontrar resposta - o que não significa afirmar a ausência de sentido. Tenho comigo, porém, um pouco de talvez: sim, talvez não devamos ficar buscando o sentido da vida, mas atribuir um sentido às nossas vidas.
Nesse meio tempo, a noite que caía tomou conta de tudo. As nuvens se dissiparam, e a escuridão de um espaço pontilhado de estrelas é o manto que cobre nossas inquietações e esperanças.

27 de maio de 2006

Lugares e momentos

Lugares e momentos para se contemplar:
- A madrugada ensolarada de final de junho em Tromso, na Noruega.
- As pessoas e as casas num meio de tarde em Antananarivo, capital de Madagascar.
- Um eclipse total de sol, como o que eu vivi em Santa Catarina, em novembro de 1994.
- O silêncio e a imensidão dos Andes, a 3200 metros de altura, perto de Santiago do Chile.
- Uma chuva de meteoros riscando o escuro céu de um recanto afastado, em Lomba Grande.
- O Monte Wellington impondo sua presença sobre Hobart, a capital da Tasmânia.
- Um cometa com majestosa cauda, visível a olho nu, mesmo numa grande cidade, como o Halley de 1910.
- O tradicional nevoeiro se dissipando na manhã de Walvis Bay, na costa da Namíbia.
- A pacata vida matinal de Vélez Rubio, perdida entre Granada e Alicante, na Espanha.
- O suave vento que percorre o deserto vermelho das planícies marcianas.

2 de abril de 2006

Um pouco de poesia e mistério

O silêncio do início de uma noite de domingo nas ruas de meu bairro pode ser eloqüente, dependendo do apuro de meus sentidos, da quietude de minha mente. Em início de abril já é noite às sete horas: resta uma tênue claridade, que rapidamente vai se apagando no poente. Estrelas de outono começam a aparecer silenciosamente. Árvores nas calçadas, sob a mortiça luz dos postes, projetam sombras que conferem um tom de irrealidade ao aqui e ao agora. Nem tudo se pode ver, e o conhecido ganha tons de mistério. De vez em quando um carro cruza o silêncio, que se refaz em segundos, tão logo o som do motor se dissolve entre o sussurro das folhas das árvores, levemente agitadas pelo vento que sopra do mar. Há casas com pessoas; há casas vazias; passando por elas, uma mente que de repente silencia e se abre para a poesia e o mistério que está ali, onde menos se espera. Por alguns instantes, existe apenas contemplação.

17 de março de 2006

Saber o futuro

Amigos e amigas, depois de longa ausência, volto a esse oceano virtual em que temos a ilusão de nos encontrar.
O que pensas do futuro? Ele te preocupa? Queiras ou não, tens em ti a consciência humana, que nos faz ver para além ou para aquém do agora. Graças a ela, o presente momento quase nunca é inteiro: parte da nossa mente está sempre enredada nas teias do passado ou tateando as incertezas do futuro.
Por uns momentos, deixemos o passado um pouco de lado, fiquemos apenas com o futuro. Mantemos com ele uma relação ambivalente: frente a um agora sombrio, a esperança no futuro nos consola; porém, o receio do que poderá acontecer amanhã pode nublar o céu azul que nos cobre neste momento. Alguns são menos sensíveis às incertezas da vida, mas muitos de nós - e talvez tu estejas entre eles - se preocupam por não saberem como serão os próximos dez anos ou mesmo como será o dia de amanhã.
As preocupações são criativas e vivem de mãos dadas com a imaginação. Talvez já tenhas pensado em como seria bom saber o que vem lá à frente. Não digo cogitar, digo saber: ter a certeza. Se vieste comigo até aqui, avancemos um pouco mais: imagina que soubesses tudo a priori: cada segundo de tua vida futura conhecido da mesma forma como todos os segundos já vividos por ti. Seria uma vida sem prazeres inesperados, mas também sem frustrações. Ela estaria toda em tua mente, como uma biografia que lemos e relemos até sabermos de cor. Mas, pense bem, antes de sonhar em ter todo esse poder... O futuro apareceria para ti como uma montanha de pedra, imóvel, surdo a todos os apelos para que fosse diferente. O presente continuaria impuro, pois o amanhã estaria sempre em tua mente, não como cogitação, mas como certeza.
Ser humano, ou seja, ter consciência, é a grande tragédia, mas também o grande desafio de cada um de nós. Eis aí a grandeza da humanidade, condenada a poder conceber as mais engenhosas utopias e ao mesmo tempo obrigada a conviver inexoravelmente com os limites do agora e as dúvidas acerca do amanhã.
É por isso que eu te digo: é melhor ser simplesmente humano e viver a beleza de tentar moldar o futuro, de consegui-lo algumas vezes, de se decepcionar outras tantas. Fazendo isso, talvez possamos ver o encanto e o mistério de viver uma história que é escrita à medida que é vivida, uma história que é tanto mais heróica quanto menos garantias temos do que vem à frente.