29 de julho de 2017

O neoliberalismo nos convenceu a combater as mudanças climáticas como indivíduos

Tradução de artigo de Martin Lucaks publicado no jornal inglês The Guardian em 17/7/2017.


O neoliberalismo nos convenceu a combater 
as mudanças climáticas como indivíduos

Pare com a obsessão de viver sua vida da forma mais "verde" possível - e comece a agir coletivamente para tomar o poder das corporações.

Você aconselharia alguém a combater um incêndio assoprando as chamas? Ou a usar um mata-moscas em meio a um tiroteio? Pois bem, os conselhos que ouvimos para combater a mudança climática dificilmente poderiam estar mais fora de sintonia com a natureza da crise ambiental que estamos vivendo.
Um e-mail que recebi na semana passada me oferecia 30 sugestões para tornar meu escritório mais verde: usar canetas reutilizáveis, redecorar com cores claras, parar de usar o elevador. Chegando em casa, eu poderia continuar com outras opções: trocar as lâmpadas, comprar legumes locais, comprar eletrodomésticos com menor consumo de energia, colocar um painel solar no telhado. E um estudo divulgado na quinta-feira afirmou ter descoberto a melhor maneira de lutar contra as mudanças climáticas: eu deveria desistir ter filhos.
Essas pervasivas exortações para ações individuais - em anúncios corporativos, livros escolares e nas campanhas dos principais grupos ambientais, especialmente no Ocidente - parecem tão naturais quanto o ar que respiramos. Mas dificilmente poderíamos estar mais enganados.
Enquanto nos ocupamos de nossa vida pessoal, as corporações que exploram os combustíveis fósseis tornam nossos esforços individuais irrelevantes. Sabe o incrível aumento das emissões de carbono verificado desde 1988? Pois uma centena de empresas sozinhas são responsáveis por 71% de toda essa emissão. Você se preocupa com suas canetas ou suas lâmpadas; eles continuam incendiando o planeta.
A liberdade dessas empresas para poluir - e nossa fixação numa frágil mudança de estilo de vida - não é um acidente. É o resultado de uma guerra ideológica, travada nos últimos 40 anos, contra a possibilidade de ação coletiva. Tem sido devastadoramente bem-sucedida, mas não é tarde demais para ser revertida.
O projeto político do neoliberalismo, que ganhou força com Thatcher e Reagan, perseguiu dois objetivos principais. O primeiro tem sido o de desmantelar quaisquer barreiras que impeçam o irrestrito exercício do poder privado. O segundo objetivo tem sido o de erigir barreiras que impeçam o exercício de qualquer vontade pública democrática. Suas políticas comerciais de privatização, desregulamentação, cortes de impostos e acordos de livre comércio liberaram as corporações para acumular lucros enormes e tratar a atmosfera como se fosse seu esgoto, além de limitar nossa capacidade, por meio do Estado, de planejar nosso bem-estar coletivo.
Qualquer coisa que se assemelhe a um controle coletivo sobre o poder corporativo tornou-se um alvo da elite: o lobby e as doações corporativas, enfraquecendo as democracias, obstruíram as políticas verdes e mantiveram os subsídios para os combustíveis fósseis. Por outro lado, os direitos de associações como sindicatos, o meio mais eficaz para que os trabalhadores exerçam seu poder em conjunto, têm sido restringidos cada vez mais.
No exato momento em que a mudança climática exige uma resposta pública coletiva sem precedentes, a ideologia neoliberal está no meio do caminho. É por isso que, se queremos diminuir as emissões rapidamente, precisaremos superar todos os mantras de mercado livre: fazer com que as ferrovias, os serviços públicos e as redes de energia voltem ao controle público; regular as empresas para promover uma gradual eliminação dos combustíveis fósseis; e aumentar os impostos para pagar o investimento maciço que se faz necessário para a implantação de uma infraestrutura sustentável e para a energia renovável - para que assim os painéis solares possam estar no telhado de todos, não apenas nas casas daqueles poucos que hoje podem pagar.
O neoliberalismo não se limitou a garantir que essa agenda fosse inviabilizada politicamente: também tentou torná-la culturalmente impensável. Sua celebração do interesse próprio competitivo e do hiper-individualismo, sua estigmatização da compaixão e da solidariedade desgastaram nossos laços coletivos. Espalhou-se, como uma insidiosa toxina antissocial, a ideia pregada por Margaret Thatcher: "Não existe essa coisa chamada sociedade."
Estudos mostram que as pessoas que cresceram sob essa era tornaram-se mais individualistas e consumistas. Imersos numa cultura que nos diz para pensarmos em nós mesmos como consumidores e não como cidadãos, como seres autossuficientes em vez de interdependentes, não surpreende que lidemos com uma questão sistêmica por meio de ineficazes esforços individuais. Somos todos filhos de Thatcher.
Mesmo antes do advento do neoliberalismo, a economia capitalista já tinha alcançado êxito em fazer as pessoas acreditarem que ser afligido pelos problemas estruturais de um sistema de exploração - pobreza, desemprego, falta de saúde, falta de realização - é, na verdade, uma deficiência pessoal.
O neoliberalismo tomou essa culpa internalizada e o tornou-a ainda mais forte. Diz que você não deve apenas sentir culpa e vergonha por não conseguir um bom trabalho, por estar endividado e muito estressado ou ainda tão assoberbado de trabalho que não tem tempo para os amigos. Agora você também é responsável por suportar o fardo do potencial colapso ecológico.
É lógico que precisamos que as pessoas consumam menos e criem alternativas para reduzir as emissões de carbono - construindo fazendas sustentáveis, aperfeiçoando o armazenamento de baterias, difundindo métodos que não gerem resíduos. Porém, as escolhas individuais irão contar mais quando o sistema econômico puder oferecer opções viáveis e ambientais para todos - não apenas para uns poucos ricos e intrépidos.
Se não é disponibilizado um transporte público de massa, as pessoas têm de se deslocar com carros. Se os alimentos orgânicos locais são muito caros, as pessoas continuam comprando nas cadeias de supermercados que vendem produtos mais baratos, produzidos com uso intensivo de combustíveis fósseis. Se a produção em massa de produtos baratos segue sem parar, as pessoas vão comprar, comprar e comprar. Este é o trabalho de neoliberalismo: persuadir-nos a abordar as mudanças climáticas através dos nossos livros de bolso, e não através do poder e da política.
O eco-consumismo pode ajudar a expiar sua culpa. Mas são apenas movimentos de massa que têm o poder de alterar a trajetória da crise climática. Isso exige de nós primeiro uma resoluta libertação em relação ao feitiço lançado pelo neoliberalismo: parar de pensarmos apenas como indivíduos.
A boa notícia é que o impulso dos seres humanos para se unir é inextinguível - e a imaginação coletiva já está propiciando alguma resposta política. O movimento pela justiça climática tem bloqueando oleodutos, forçado o desinvestimento de trilhões de dólares e ganhado apoio para a política de adoção de energia 100% limpa em cidades e estados de todo o mundo. Novos laços estão sendo estabelecidos com o movimento Black Lives Matter, com a defesa dos direitos dos imigrantes e indígenas e as lutas por melhores salários. Na sequência de tais movimentos, há partidos políticos que parecem finalmente dispostos a desafiar o dogma neoliberal.
Um bom exemplo dessa reação é Jeremy Corbyn, líder do Partido Trabalhista inglês, cujo Manifesto propôs um projeto redistributivo para lidar com as mudanças climáticas, reestruturando a economia e impedindo que os oligarcas corporativos continuem agindo sem controle. A ideia de que os ricos deveriam pagar sua parcela justa para financiar essa transformação foi considerada uma piada pela classe política e pela mídia. Porém, milhões não concordaram com essa visão. A sociedade, que há muito se dizia que tinha desaparecido, está de volta - e com um plano de vingança.
Portanto, plante suas cenouras e ande de bicicleta: isso tornará você mais feliz e saudável. Mas é hora de parar com a obsessão sobre quão "verde" cada um de nós é individualmente - e começar a retomar o poder que está nas mãos das corporações.

Martin Lukacs - The Guardian - 17/07/2017