O presente vai tomando conta da gente, e o passado se desfaz em denso nevoeiro. O real se transforma aos poucos em lenda, em mito. Parece que estamos vivendo em 1984, de Orwell, onde o passado era moldado conforme os interesses do poder, e as pessoas já não mais conseguiam se lembrar se a vida estava melhor ou pior do que há dez ou vinte anos.
O presente se impõe como verdade.
Porém, algo estranho acontece. Caminho pelas silenciosas ruas de meu bairro e de repente me surpreendo com a altura das grades. Lembro subitamente de um esquecido tempo em que podíamos nos sentar na frente de nossas casas. As famílias colocavam as cadeiras nas calçadas e ficavam até tarde conversando sob a luz fraca dos postes nas quentes noites de verão. Não me lembro de grades naquele tempo. Muros, sim. Mas baixos. Não me lembro de medo. Esse tempo existiu realmente? Parece uma ilusão, o desgastado mito da idade de ouro. Mas, contra todas as evidências, minha memória resgata lembranças de uma prosaica utopia que acredito ter vivido.
As trevas não chegaram subitamente. Não houve um dia em que, por decreto, as pessoas se trancaram em suas casas. Não. O perigo foi entrando sorrateiramente em nossas vidas e, com a mesma naturalidade com que aceitamos o frio do inverno, acabamos nos acostumando com a idéia de ficar trancados dentro de nossas casas. As grades foram crescendo em volta de nós como o capim depois da chuva, silenciosamente. Hoje, contemplando o presente com a memória do passado, supreendo-me não apenas com a altura dessas pontiagudas estruturas de ferro, mas especialmente com o fato de que elas se tornaram apenas um dos muitos recursos para tentar manter distante a violência. Acima das grades, cercas eletrificadas. Nas casas, sofisticados sistemas de alarme. Nas calçadas, guaritas com vigilantes particulares. Nas ruas, carros das equipes de segurança privadas. Volto trinta anos no tempo e me dou conta de que não era nada assim. Como esperávamos que fosse o ano 2000? Como seria 2020? Estaria o mundo se preparando para uma nova era? Agora vivemos 2005, o presente nada mais é do que o futuro de outrora, e eu me constranjo em anunciar para os fantasmas do passado que não há boas novas: para crentes e descrentes, não são bênçãos que descem dos céus, mas o medo, que se precipita lentamente sobre nossas casas e vidas como o sereno de uma eterna madrugada.
Crianças e adolescentes crescem nesse cenário e devem pensar que sempre foi assim. Hoje, nós olhamos para as casas e nem reparamos nas grades que as separam das ruas; olhamos para as ruas e nem cogitamos da possibilidade de nos sentarmos nas calçadas, de caminharmos sob o manto das estrelas. O passado se transforma lentamente em ilusão, e a lembrança de outros tempos soa como uma espécie de senilidade.
Caminho sob a luz do sol nas silenciosas ruas de meu bairro. Vejo belas casas. Há jardins, alguns sabiás, raros carros passando. Mas eu me pergunto quanto mais as grades terão de crescer para percebermos que tomamos um caminho errado no passado. Não, não era esse o futuro com que sonhávamos!