12 de setembro de 2009

Cristianismo e democracia

A democracia tem um valor universal? Por que ela parece ser mais valorizada em algumas culturas e menos em outras? Essas são questões que se apresentam quando se examina a história mundial e se observa onde a democracia parece forte, onde ela se apresenta de forma mais frágil e onde ela nem sequer é objeto de desejo da maior parte da população.
Perguntas assim não podem ter respostas fáceis. De qualquer maneira, o filósofo francês Luc Ferry procura lançar alguma luz sobre o assunto. E, paradoxalmente para alguém que defende a filosofia como alternativa à religião, Ferry enxerga uma contribuição importante da moral cristã para o surgimento dos ideais democráticos.
Em seu livro "Aprender a viver: Filosofia para os novos tempos", Ferry, ex-ministro da Educação da França, faz um breve panorama histórico da filosofia e usa um capítulo para tratar da relação entre cristianismo e filosofia.
Ferry (p. 90) reconhece que o cristianismo trouxe, para o plano moral, ideias não gregas que são de uma espantosa modernidade:
"O mundo grego era basicamente aristocrático, um universo hierarquizado, no qual os melhores por natureza deviam, em princípio, estar 'acima', enquanto se reservavam aos menos bons os níveis inferiores. Não se esqueça de que a pólis grega se baseava na escravidão."
Em contraposição à visão tipicamente grega, o cristianismo surge com a noção de que a humanidade é uma só, de que os homens são todos iguais em dignidade, apesar das diferenças físicas e materiais que existam entre eles.
Segundo Ferry, os filósofos gregos tinham a convicção de que existe uma hierarquia natural dos seres, tal como existe uma hierarquia na natureza, resultante das desigualdades que existem entre todos os seres: uns mais inteligentes do que os outros, uns mais rápidos do que os outros, etc. Sob essa concepção, "alguns são naturalmente feitos para comandar, outros, para obedecer - e é por isso, aliás, que a vida política grega se adapta, sem dificuldade, à escravidão" (p. 92).
Para os cristãos, as desigualdades obviamente existem, mas não têm importância no plano moral: "Com o cristianismo, saímos do universo aristocrático para entrar no da 'meritocracia', quer dizer, num mundo que vai, inicialmente e antes de tudo, valorizar não as qualidades naturais de origem, mas o mérito que cada um desenvolve ao usá-las. Assim, saímos do mundo natural das desigualdades para entrar no mundo artificial, no sentido de que é construído por nós, da igualdade. Pois a dignidade dos seres humanos é a mesma para todos, quaisquer que sejam as desigualdades de fato, já que ela repousa, desde então, na liberdade e não mais nos talentos naturais."
Ferry enxerga nessas ideias cristãs uma força revolucionária que inspirou, em parte a Declaração dos Direitos do Homem, de 1789, e a concepção de democracia moderna: "Paradoxalmente, embora a Revolução Francesa seja por vezes fortemente hostil à Igreja, ela não deixa de dever ao cristianismo uma parte essencial da mensagem igualitária que vai contrapor ao Antigo Regime. Aliás, constatamos ainda hoje o quanto as civilizações que não conheceram o cristianismo têm dificuldade em dar à luz regimes democráticos, porque a ideia de igualdade, em especial, não é evidente para elas." (p. 94)
Assim, ainda que as religiões cristãs, em muitos momentos de sua história, tenham sido promotoras de massacres e justificado tantas desigualdades, o fato é que a moral cristã trouxe à cena, há dois mil anos, uma nova concepção de humanidade, que favoreceu, séculos e séculos depois, o surgimento da democracia moderna.