9 de fevereiro de 2008

Um hotel com 109 anos

No início do século XX não existia Gramado, mas muitos porto-alegrenses ou leopoldenses subiam a serra para veranear, escapando do calor sufocante do verão. Da capital até São Francisco de Paula eram três dias de viagem em carreta de boi numa estrada de terra, freqüentemente embarrada. O destino de muitos era o Hotel Veraneio Hampel, onde os hóspedes, até pelas dificuldades de deslocamento, costumavam ficar por semanas. O hotel, criado em 1899, continua em funcionamento. Lá estão o lago, a cascata, as trilhas na mata, os centenários pinheiros e, de vez em quando, até os bugios. O hotel fica distante do centro de São Francisco de Paula e, por isso, hospedar-se nele é ganhar um terapêutico recolhimento. De 1899 para cá, Hampel foi reformado e ampliado, mas, mesmo assim, respira-se a história nos seus simples aposentos. Mantém-se um clima familiar, inexistente nos grandes e famosos hotéis de Gramado ou Canela. A comida caseira, de influência alemã, é saborosa e não deve ser muito diferente daquela que se provava há cinqüenta ou cem anos. À noite, o único som que se ouve é o do vento tocando as araucárias. E olhando as fotos antigas, expostas nas paredes do hotel, não é difícil imaginar que se está fazendo uma viagem no tempo, voltando cem anos atrás.

Abaixo, algumas fotos que mostram um pouco do passado e do presente desse hotel:








7 de fevereiro de 2008

Verdades

A busca pelo conhecimento tem seus encantos e seus perigos. Afinal, conhecimento é poder. Sem ele, não haveria a penicilina nem a bomba atômica. Mas há quem aponte justamente para os efeitos negativos da busca pelo conhecimento para mostrar que esse esforço carrega a semente do mal. Está no Gênesis: bastou Adão e Eva desejarem provar da árvore do conhecimento para serem expulsos do paraíso.

Não vou me deter, neste momento, nas sofisticadas engrenagens que movimentam a produção de novos conhecimentos científicos: as pesquisas de ponta muitas vezes estão a serviço, direta ou indiretamente, do poder econômico e político. Por isso, é importante não apenas saber o que a ciência nos traz de novo a cada momento, mas também descobrir como se faz ciência hoje: quem financia a pesquisa científica, com que propósitos? Também é preciso dizer que novos conhecimentos não são gerados apenas em laboratórios: viver é aprender; por isso, cada ser humano, mesmo que esteja apenas sonhando em sua cama agora, está criando novos saberes, relevantes ou não, compartilháveis ou não.

Neste espaço, hoje, vou me deter exclusivamente na cristalização do saber, no conhecimento que é tido como definitivo. Esse é um perigo tanto para cientistas como para qualquer cidadão. Sua manifestação mais típica ocorre no âmbito das idéias religiosas. Cada religião tende a ser a cristalização de um conjunto de idéias, transformadas em dogmas – e os dogmas, por definição, não podem ser questionados. Alguém diz: aqui está a verdade, e pronto – acabou todo e qualquer questionamento. Quem ousar questionar a verdade definitiva deve ser excluído – e essa exclusão, em alguns momentos da história e em alguns lugares ainda hoje, pode ir bem além da exclusão do convívio em um grupo, mas chegar à pena capital.

A humanidade gera novos conhecimentos a todo momento. O contínuo avanço do conhecimento representa, assim, uma ameaça a qualquer sistema de pensamento que se cristalizou. E o raciocínio dos líderes e seguidores da maioria das religiões é o seguinte: se a verdade está revelada, não há mais por que fazer questionamentos, não há por que continuar investigando. Todos sabem o que está acontecendo hoje nos Estados Unidos, onde milhões de pessoas não acreditam na Teoria da Evolução, apesar de todas as evidências construídas ao longo de quase dois séculos de pesquisas.

Todo e qualquer fundamentalismo (religioso ou científico) é hostil à investigação, à pesquisa, à reflexão. Ele implica uma postura regressiva ao se prender ao passado, seja esse passado um discurso religioso, seja uma teoria científica. Abrir-se a novos conhecimentos pode pôr em dúvida a verdade de ontem e de hoje, removendo o alicerce sobre o qual se construiu uma religião, uma cultura, uma teoria.

Se estamos de acordo até aqui, então chegamos à conclusão de que não se deve tomar nenhum conhecimento como sendo a verdade absoluta; precisamos continuamente questionar, duvidar, interrogar, reformular nossos saberes. Surge, então, uma questão: se nenhum conhecimento é absoluto, as pessoas não ficam sem uma referência que as ajude a separar o certo do errado, o falso do verdadeiro? Não há o risco de que as pessoas relativizem todos os saberes, escolhendo simplesmente o que melhor lhes convêm? Bem, isso de fato acontece hoje, mesmo entre aqueles que acreditam em verdades absolutas: cristãos têm a sua verdade; muçulmanos têm uma outra – e, muitas vezes na história, uns tentaram impor aos outros sua verdade. Numa sociedade multicultural, fica mais evidente que não existe uma, mas várias verdades “absolutas”.

Um desafio semelhante se verifica mesmo quando admitimos que não temos um conhecimento definitivo sobre o mundo, sobre a vida. Corre-se realmente o risco de colocar em pé de igualdade, por exemplo, o Criacionismo e a Teoria da Evolução. Eu vejo esse tipo de sincretismo acontecer a todo o momento. Pessoas cultas dizem acreditar em horóscopo e, quando alguém argumenta que não há nenhuma evidência científica que comprove a influência dos astros sobre o destino dos homens, elas alegam que a ciência é limitada e, parodiando Shakespeare, afirmam que há mais coisas entre o céu e a Terra do que podemos imaginar. O raciocínio dessas pessoas é bem simples: se não há verdade absoluta, tudo pode ser verdadeiro, mesmo que haja prova em contrário.

A superação dessa relativização extrema não é fácil e, creio, não esteja bem resolvida. Penso, particularmente, que nossa capacidade de discriminar entre uma boa e uma má explicação para os fatos depende do acesso a uma grande quantidade de informação, de diferentes fontes. Depende, igualmente, de se saber qual hipótese tem resistido melhor aos testes a que têm sido submetida. Porém, nada disso funciona sem que o indivíduo seja movido por um ceticismo radical, que interroga continuamente o mundo. A ciência, com todos os seus defeitos, têm esta virtude: ela é interrogação, ela é questionamento. Assim, se ela nada nos entrega de absoluto, pelo menos nos ajuda a escolher qual idéia, qual explicação pode assumir o status de “verdade provisória”. Hoje, por exemplo, a maioria dos cientistas acreditam que o universo foi criado a partir de uma explosão original, chamada de “Big Bang”. Não há unanimidade a esse respeito, mas o conjunto de evidências que os astrônomos têm obtido em suas pesquisas é favorável a essa explicação. Ainda assim, pode ser que, nos próximos dez ou vinte anos, sejam feitas novas descobertas que dêem força para outra teoria.

No campo da moral, o desafio é ainda maior quando se quer superar os riscos da relativização extrema ou do fundamentalismo. A maior parte dos princípios morais que regulam o funcionamento da sociedade têm uma base religiosa. Quase todas as religiões dizem que não se deve matar, que se deve ajudar aqueles que sofrem. Isso nos permitiria falar que existem princípios morais absolutos, universais? Penso que o melhor seria falar em princípios morais hegemônicos, pois há uma certa relatividade mesmo entre os fundamentalistas, que podem, num momento, condenar o assassinato de um concidadão, mas, logo depois, ver como “santa” a eliminação de inimigos.

É tentador aceitar que, no âmbito dos valores morais, haja verdades absolutas. Porém, onde estão os princípios universais que todos poderiam aceitar, independentemente de onde vivessem? Escolheríamos uma religião em detrimento de outras? Faríamos uma média entre elas? A impressão que eu tenho é de que os princípios de cada religião tendem a refletir o contexto de sua criação, correndo o risco de ficarem defasados com o passar do tempo ou com sua exportação para outros ambientes. É bastante comum que, em culturas onde as mulheres são discriminadas, as religiões privilegiem os homens nas suas regras morais alegando ser esta a vontade de Deus. Se tivermos que aceitar os princípios religiosos como absolutos, então as mulheres ficarão eternamente ocupando um papel secundário, sem chance de mudar uma condição que as prejudica? Se uma religião diz que os sacerdotes não podem se casar, assim será até o fim dos tempos?

Faço esses questionamentos para mostrar como essa é uma questão complexa, difícil de ser resolvida. Precisamos de princípios morais, mas temos de evitar tanto o risco de cristalizá-los quanto o de flexibilizá-los em demasia, a ponto de chegarmos a uma moral customizada, guiada apenas pelo pragmatismo – aliás, esse parece ser um retrato de uma parcela significativa da sociedade contemporânea. Lamento se vou decepcioná-los ao não oferecer uma resposta, mesmo que provisória. Eu não sei se a diversidade humana algum dia vai permitir que tenhamos um conjunto de princípios morais compartilhados efetivamente por todos. Sinto apenas que a moral deve ser sempre objeto de nossa investigação, assim como a origem do universo ou qualquer outro tema científico. E sei que, nessa investigação, devemos tomar cuidado para não chegarmos ao ponto de acreditarmos que toda e qualquer atitude é justificável ou, ao outro extremo, de acreditarmos que temos todas as respostas, não mais precisando fazer qualquer pergunta.